Entrevista com o Coronavirus.
Kleber Del Claro
Tudo começou numa manhã ensolarada e um pouco fria. Certa canseira, um pouco de tosse seca. O resto do dia foi normal no trabalho. Já em casa pensei em dar uma corrida na pista da praça próxima, mas veio uma onda de calor, uma febrinha e, o nariz escorreu. Pensei..., deve ser uma gripezinha!
Passados dois dias não conseguia respirar direito, uma sensação de se afogar no seco. Não teve jeito, fui ao hospital. Ao chegar, quase que imediatamente me internaram, disseram que eu estava com o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Não entendi nada. Era uma gripezinha! Já tive tantas assim!
Quando percebi, não tinha ninguém para conversar. Não conseguia falar, imóvel, só ouvia minha respiração. Por um tubo.
Chhhhiiissshshshshshspat, tuc tuc tuc, Chhhhiiissshshshshshspat, tuc tuc tuc, Chhhhiiissshshshshshspat, tuc tuc tuc, ...
Até que tudo escureceu. Foi então que eu o ouvi.
- Ihhh te compliquei né? Desculpa viu!... Não era minha intenção (uma voz doce).
- Quem está falando? (perguntei com a mente, para aquela voz suave, melancólica).
- Eu, um agente infeccioso suficientemente pequeno para passar por filtros que retêm bactérias (disse a voz agora com altivez e prosseguiu):
- Me apresento como um organismo codificador de cápside, ou seja, uma capa proteica que protege tudo aquilo que realmente sou: um ácido nucleico viral. Sou das antigas Sr. Sapiens!
- Deus do céu! Estou falando com um micróbio virulento da vida! Tô morto!
- Epaaa, pera aí, não ofende!... Não gostou da definição?... Ok, tá antiquada né?... Não sou qualquer “micróbio virulento da vida” não! Tá pensando que sou qualquer salmonelinha de maionese é?... Pois eu sou um parasita genético meu filho! Sou “O” parasita genético de informação, com vários graus de dependência dos sistemas das células do hospedeiro para processamento de informações. Sentiu o drama querido?... (silêncio mortal, quase eterno).
Passados alguns instantes de perplexidade, exclamei do fundo da alma.
- Deus, tô morto? Estou no caminho senhor? (senti suor frio, um gosto ocre).
- Tá morto não amigo, tá não!... Não quero matar ninguém. Só quero usar o sistema de informação genética de suas células para me replicar, é disso que estou falando. – falou a voz calma, pausada, irritantemente igual à de jornal de esporte fazendo poesia com coisa nenhuma. E continuou:
- Um bom parasita não mata seu hospedeiro. Não sou predador, sou parasitaaaa! Entendeu?... Quero você vivinho da Silva, para lançar sua saliva, cheia de mim nos outros por aí e eu poder fazer mais cópias, replicar indefinidamente! (finalizou com escárnio, a voz seca vinda dos meus pulmões, áridos).
- Simples assim? (perguntei sufocado, com dificuldade).
- Simples assim! Afinal de contas o que você é, se não um monte de genes querendo fazer cópias de si mesmo? Isso é a vida colega!... Sr Sapiens, eu, você, uma batata, somos todos pacotinhos de genes querendo sobreviver, se replicar, nada mais...
-Jesus! (exclamei. O vírus gargalhou de tanto rir e continuou).
- Não chama não que ele vem te buscar e daí a culpa não é minha heim! (retrucou em tom jocoso). - Mas me conta aí, o cidadão antropoide derrubado aí tem nome? Faz o que da vida o saquinho 70% líquidos e 30% celulazinhas queridas para eu infectar?
- Ahh, desculpa, sou o Beto, um jornalista.
- Ahh, já passei por alguns na Itália e na Espanha, até chegar a você aqui nesse mundo tropical, mas não deu tempo de conversar com nenhum deles. Ou bateram com as botas antes, ou na maioria fiz meu papel com mais eficiência, ou seja: infectei, me reproduzi, caí fora antes que os leucócitos me pegassem. Uhuuuuuu! Não dou bobeira! (comentou o vírus alegremente, como se acabasse de sair de um parque de diversões).
- Interessante..., eu espero que o senhor caia fora logo. Tá vendo algum leucócito perto?... Sr Covid? Posso chama-lo assim? (perguntei ansioso e receoso). Não quis ofender, o senhor me entende né?
- Ah sim, sim. Isso não me ofende. E me chame como quiser. Menos de gripezinha, isso me enfeza! Mas como eu disse antes, para ser muito eficiente e é atrás disso que corro, quero evoluir! (falou em tom imponente). – Sabe! Quero ficar mais resistente aos ataques do sistema imunológico de vocês para me reproduzir mais e mais. Mas para isso, preciso de gente, quanto mais, melhor né?
- Mas o seo Covid, o senhor não veio do mato? Parece que eu ouvi essa história? Agora tá nas cidades dos humanos e... (ele me cortou a palavra).
-Bem, vamos lá. Sr. Beto jornalista, pergunte o que quiser e vou responder, nunca fui entrevistado. Nunca quiseram saber o que penso, meus propósitos, que são tão simples como já adiantei. E vamos combinar que se no fim da noite tiver algum leucócito seu se assanhando, nem fico para brigar, caio fora no primeiro sapato que passar por aqui, ok? (falou em tom alto e eloquente a voz, agora quase feminina).
- Ok! (pensei, venham logo leucócitos!). Então o senhor não era do mato?
- Sim, claro! Estava eu lá tranquilo nos morceguinhos felizes da floresta da China, por milhares de anos. Daí, de repente, pegaram meus amiguinhos aos quais já estava muito bem adaptado e levaram eles para uma gaiola numa feira louca em Wuhan, na província de Hubei, República Popular da China. Conhece?... (falou em tom professoral).
- Ããããã não conheço! E porque não tentou voltar para a floresta? Não era melhor do que vir para essas cidades feias, cheias de poluição, carros, barulhos horríveis? (toda tentativa vale a pena né? Quem sabe convenço essa praga a voltar!).
- Pois é. Quando o morceguinho entendeu que iam fazer sopa dele. Ihhh, se borrou todo e eu caí num Pangolim. (falou num tom de total surpresa). - Um bicho que não gosto e parece um dos seus tatus, sabe? Daí meu DNA se transformou com as novas informações das células do tal do Pangolim, eu evoluí para uma forma que até para mim é nova, muito mais rápida em se replicar. E na hora que o Pangolim espirrou... (falou como uma moça nova, adolescente, cheia de novidades):
- Foi tudo muito, muito rápido sabe? Fui parar no nariz de um freguês do tal mercado. Coisa deliciosa! Amei! Lindooo!
- Nossa, assim tão rápido? Tão inesperado? (perguntei sempre em pensamento).
-Pois é amigo, tô gostando de você viu! (falou de forma muito assertiva). – Eu absorvo um pouquinho de cada um pelo qual me interesso. Um sotaque aqui, um ali. Um conhecimentozinho novo aqui, outro lá.
- Eu também estou simpatizando muito com você, então pensa aí em me deixar vivo, tá legal? (implorei, tentando disfarçar meu cinismo e desespero).
-Tô pensando, tô pensando! Kkk. (respondeu o vírus, com ar de safadeza).
Pensei. Só posso ter morrido, ou estou no finalzinho, isso deve ser um delírio daqueles, mas vamos continuar. O que mais me resta agora? Apenas algumas lembranças, da imprudência. Por que fui à lanchonete cheia, tomei guaraná no copo de vidro, cumprimentei um conhecido e depois sem lavar as mãos peguei o pastel, sem papel. Por quê? Ou será que foi no banheiro da redação? No microfone?
-Então, como eu ia contando (continuou o covid, agora como se fosse uma vovozinha contando prosa), fui parar num humano e gostei viu! Nossa reproduzi com as informações genéticas das células de vocês que foi uma beleza! (a voz dessa vez foi de uma assertividade exultante). - Uma expansão incrível! E como ainda não nos conhecíamos, por ser um parasita genético, fui mais rápido. Explosão populacional! Aeeeeeeeee! Conquistei o Mundo! Viva a Globalização! Aprendi esse termo com um economista, que Deus o tenha! Dalla Cina al mondo! (da China ao mundo, o vírus exclamou em um italiano romano, puro!).
-Então você se adaptou super rápido e nosso organismo ainda não o conhece. Vai realmente dominar o mundo desse jeito! Sem piedade? (questionei)
- É esse o negócio primata! (falou bem alto) - Ah, mas olha, nada de pieguice! Primeiro, gostei do “você”, estamos ficando íntimos, Betinho. Conheço todo seu corpinho. O pulmão então, tá tudo dominado. (falou num tom piedoso e lamurioso) - Mas não me venha acusar de não ter piedade com vocês Homo sapiens, já falei que meu negócio não é matar! Isso é uma fatalidade! Eu lá tenho culpa de entrar num corpo que o cara fumou a vida toda? Num dá né? O pouco estrago que eu causo já vira uma balbúrdia lá dentro e c'est fini! (disse “é o fim!” em francês puro). - Mas, sua espécie, você aí, tem algum direito de questionar eu querer dominar o mundo?... (disse num tom agora altivo e provocante e muito, muito inquisitivo).
-Bem...
-Nã, nã, nã, nem começa (como uma mãe dando um pito, dedo em riste). - Vocês estão destruindo o planeta! Arrasando ecossistemas mundo afora, na terra, no ar e no mar. Vocês sim, sem piedade alguma. Quem mandou tirar o morcego e o pangolim da floresta? (disse como se fosse a última frase do jornal das oito, que começa quase às nove). Não sou o primeiro que convidam à sua casa!
- Bom, as pessoas precisam comer, plantar, se vestir, nossas espécie...(tentei, mas fui interrompido novamente).
- Pode parar, sua espécie... igualzinho a mim! (disse o vírus em tom absolutamente finalista). - Querem crescer indefinidamente, expandir ao máximo, sem controle populacional algum. Conquistar para dominar! Eu só aprendi rapidinho a me acostumar a vocês, só estou acompanhando amigo. Eu sigo as suas estradas, seu aviões, seus barcos, vou aonde vocês me levarem. (fez uma pausa).
-Eu sou o que vocês fazem de mim!... (exclamou em tom alto, bíblico, o vírus).
- Não terá um fim então? (já nervoso profetizei em desalento).
- Espero que não. Mas tudo acaba tendo um fim. Eu, vocês, os dinossauros, o tigre asiático que eu gostava tanto. Quero me multiplicar ao máximo e produzir variações mutantes antes que desenvolvam uma vacina contra mim, como fizeram com o coitadinho do H1N1, ahh coitado! (em tom de piada e rindo falou o vírus).
- Então se as pessoas se afastarem umas das outras, se não viajarem, isso vai ser ruim para você? (especulei, em tom de confirmação, joguei o verde).
- Ah sim, eu gosto de gente juntinha, bem pertinho, abraço no churrasquinho, beijoquinha no canto da boca, tirando melequinha do nariz, cheiiinha de mim! E colocando no cantinho da mesa. Ou... dando aquele peteleco sabe? Pela janela do carro e indo parar no que vem atrás! Amoooo isso! Amooooooo! Humanos, adorei! (em total escárnio, com uma voz melosa, jovial, sedutora).
E prosseguiu o vírus.
- Adoro desobediência! Por isso saí rapidinho lá dos comunistas. Lá, mandou o povo faz, ou.... Já, quando cheguei à Europa, nas pizzas Italianas! Santo Dio, che meraviglia! (Santo Deus, que maravilha, disse num Italiano Milanês e prosseguiu). – Capitalismo selvagem e eu, tudo a ver! Negacionismo, “fake news”, menosprezar cientista! Vocês são muito loucos! Infelizmente um médico e cientista chinês não escapou de mim, coitadinho se foi numa tristeza danada. Ele me descobriu, falou de mim, contou para todo mundo e..., o prenderam! Pode? (falou em tom de bronca, como mãe brava com as mãos na cintura).
- E essas enfermeiras e médicos de máscaras? Gosta deles? (eu perguntei).
- Ah, detesto esse povo. Lavando as mãos toda hora, ou passando no álcool daqueles potinhos. Isso destrói minhas cápsides, as membraninhas que protegem meu ácido nucleico, meu ser. E essas máscaras, até umas bem vagabundas muitas vezes não me deixam pular de um serzinho para outro, uma tristeza viu! Sabão, álcool e máscaras; detesto! (falou como um velho malcriado).
- Estou entendendo. Basicamente você precisa da proximidade, ignorância e da porquice humanas para se dar bem. É isso? (perguntei de forma até pedante).
- Sim, isso mesmo. Culpa suas! Não minha. Cortam os matos todos, sujam os rios, vivem na sujeira, num amontoado de gente um atrás do outro. Não lavam as mãos ao sair do banheiro, depois põe no nariz e depois rói a unha, acho ótimo! Não tem parada. É isso aí! Tá oquei? Aprendi essa com um velhinho aí que despachei ontem, coitado. (falou com ironia o vírus).
- Então sua estada conosco vai longe? (lamentei em desânimo).
- Acho que sim. Mas não fica triste não. Se daqui um, ou dois anos inventarem uma vacina, ainda vai ter alguma cepa mutante minha que vez ou outra dará as caras né? A gente tem que se virar, sabe como é? Passar o DNA pra frente (falou igual político pego em sacanagem).
- Uhummm! Não vai ter jeito (pensei desolado).
- Sabe qual é minha maior preocupação? (perguntou o vírus, me surpreendendo).
- Não! (retruquei).
-Competição! (ele disse quase que num profundo lamento, com dor).
- Como é? (eu disse).
-Competição. Olha só! Vocês vão continuar devastando o mundo..., aquecimento global, (fez longa pausa) - essas coisas que terraplanista não acredita. Ai desculpe! (disse num tom de fofoqueira saltitante) - Ontem matei um morrendo de rir. O imbecil! Desculpa, sua espécie, eu sei..., não quero ofender, mas esse era imbecil demais. Nem Neandertal era tão burro. Acreditava em terra plana! Pizza voadora, essas coisas! Kkk..., matei com gosto esse, perdão! (disse o vírus se acabando em risos contidos). - Então..., onde parei... ah, sim. Vocês vão acabar descongelando lá nos polos algum primo meu ferrado viu? Tô vendo a hora! Daqueles ruins mesmo, bicho brabo, matador viu? Eu lembro o que fizeram com os Neandertais! Uma tristeza. E os coronas e outros vírus, até sem cápside, que estão aí no Cerrado, Amazônia e Pantanal? Tem cada um de intestino que vai ser um rebosteio geral. Eu não quero nem ver! Disso tenho medo, competição! E ela virá! (finalizou em tom profético de pastor pedindo dízimo em troca de salvação).
- É competição é coisa séria mesmo. Tem muita competição desleal né? (quis ser simpático, questão de necessiadade).
- Sim, tem toda razão Betinho. Vê essa Dengue aí. Tem uma mulher no seu lado aqui, empacotando com Dengue. (falou quase que com piedade).
-Sério? (perguntei, fiquei curioso né?)
- Sério! Essa tal da Dengue não tem perdão viu, horrorosa. Mas não ganha de mim não, eu espalho fácil, fácil, não preciso de pernilongo. Também pudera, adoro vocês humanos, me dão uma força danada! Uhuuuu! Coisa boa chegar nessa macacada depilada! Adoro negacionista! Amooooo! Negacionista para mim é funcionário do mês! (falou como se fosse empresário arrogante).
- Tá quase amanhecendo né? (minha esperança se esvaindo).
- Tá, e não tem remédio que te ajude Betinho, ainda não viu!...(senti pena em sua voz). - Estão tentando aqui, mas não adianta, não destrói minhas cápsides. E pode até estragar alguma coisa em você. Mas deixa eu te perguntar uma coisa, posso?
- Claro! Você é o único parasita genético que tenho para conversar no meu fim mesmo!
Rimos junto, bem gostoso.
- Isso que eu ia te perguntar. Ainda tem felicidade dentro de você? Esperança? Bons sentimentos? Boas lembranças e vontade de viver?
- Incrível, me sinto muito fraco, mas tem tudo isso ainda escondido aqui (respondi).
- Pensa nisso então, com força! Tem muito disso em criança, por isso não me dou bem com elas. Elas ainda não estão contaminadas pelo que vocês lhes ensinam ao longo da vida. Crianças têm pureza e alegria demais para eu me instalar nelas (fez uma pausa e prosseguiu):
- Uma pena que as crianças aprendam a vida como vocês a tornam e não como deveria ser! (num tom de profunda sinceridade senti um afago do vírus, que prosseguiu):
- Dorme um pouco agora. Detesto despedidas! (como se passasse a mão na minha testa).
Eu fiz o que ele mandou, enquanto aguentei e apaguei.
Acordei no outro dia, sem os tubos. Consegui me sentar. Uma enfermeira veio com os olhos cheios d’água e me disse:
- Pensei que não íamos mais te ver Sr Roberto!
Eu estava vivo. Não ouvia mais o vírus dentro de mim, aliás, não senti mais seu cheiro, nem tão pouco o gosto da sopinha que me trouxeram. Devia ter perguntado a ele sobre sequelas. Ficou a dúvida. Meus leucócitos o expulsaram? Ou ele gostou de mim e decidiu ir embora? - Sai pra lá Síndrome de Estocolmo! (falei alto e me olharam preocupados).
Meu sistema imunológico reagiu. Pensar em viver, nas coisas boas da vida, nos meus amores que me esperam, em tudo que ainda posso fazer. Voltar a ser criança por alguns instantes foi o que me salvou.
Do autor:
Kleber Del Claro*
cientista, biólogo, escritor e professor universitário federal.
A Ciência que nós fazemos
(https://www.cienciaquenosfazemos.org/)
*https://orcid.org/0000-0001-8886-9568
*http://lattes.cnpq.br/0560742682726836
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